Eu queria ser uma tela! Uma tela nua de branco para sentir teu desespero, teu afecto essa calma gargalhando embriaguez de Baco. Adormecer em ti junto a Modigliani e Rivera prender-te os sentidos madrugada fora percorrer silêncios. Eu queria ser a Paz que te define o primeiro olhar de um recém-nascido as rosas brancas no cais. Eu queria ser um som e uma tela! Quem dera que fosse somente metáfora e esta angústia que se encerra calada no peito fosse gotícula de mel suavizando tua fronte. Eu queria ser a cama do sem-abrigo, a casa daquela a quem penhoraram a vida e a mãe de todos os órfãos. Eu queria ser a filha amada de todos os que são órfãos de filhos, os olhos dos cegos, os braços dos que não têm mãos, as pernas dos que não podem caminhar, a voz dos que não têm voz. Eu queria ser a música, a poesia ser a tela e ter um pacto com Deus. Saber-me nada para Ele mas ter a convicção que a Humanidade existia. Ah! Como eu queria que o fluxo da vida prevalecesse intacto tal como o espírito do rio que corre na berma da infância. Sento-me numa pedra. O som da água é tão sereno quanto um acorde do piano. Ouço todos os sons num instante. É isso que sou. Liberto-me. Descanso. Célia Moura, in "Terra de Lavra" - "Modocromia" Editora - Dez/2023
Eu queria ser uma tela!
Uma tela nua de branco
para sentir teu desespero, teu afecto
essa calma gargalhando embriaguez de Baco.
Adormecer em ti
junto a Modigliani e Rivera
prender-te os sentidos madrugada fora
percorrer silêncios.
Eu queria ser a Paz que te define
o primeiro olhar de um recém-nascido
as rosas brancas no cais.
Eu queria ser um som e uma tela!
Quem dera que fosse somente metáfora
e esta angústia que se encerra
calada no peito fosse gotícula de mel
suavizando tua fronte.
Eu queria ser a cama do sem-abrigo,
a casa daquela a quem penhoraram a vida
e a mãe de todos os órfãos.
Eu queria ser a filha amada de todos os que são órfãos de filhos, os olhos dos cegos,
os braços dos que não têm mãos,
as pernas dos que não podem caminhar,
a voz dos que não têm voz.
Eu queria ser a música, a poesia
ser a tela e ter um pacto com Deus.
Saber-me nada para Ele mas ter a convicção que a Humanidade existia.
Ah! Como eu queria que o fluxo da vida prevalecesse intacto tal como o espírito do rio que corre na berma da infância.
Sento-me numa pedra.
O som da água é tão sereno quanto um acorde do piano.
Ouço todos os sons num instante.
É isso que sou.
Liberto-me.
Descanso.
Célia Moura, in "Terra de Lavra" - "Modocromia" Editora - Dez/2023